Introdução
Priorizar a circulação de pedestres e ciclistas, bem como o transporte coletivo público sobre o individual, está previsto de maneira explícita nas diversas cartas regulatórias. A questão é que a maioria depende de regulamentação ou há conflitos dentro do próprio texto.
A legislação aqui analisada parte de um recorte de nível institucional federal e municipal a partir da virada da década de 1970 para a de 1980, pois é durante a redemocratização do Brasil que é firmado o pacto federativo, que dá mais autonomia aos municípios sobre sua própria legislação.
Apesar da autonomia garantida pela Constituição, parte da normativa analisada para o município de São Paulo decorre de exigência regulatória federal. No geral, é o que ocorre com os planos de mobilidade, mas também com os planos diretores e leis de uso e ocupação em outros municípios. O objetivo da análise realizada aqui é encontrar tendências, contradições ou vácuos na legislação sobre mobilidade urbana, com foco nos dispositivos voltados à segurança de pedestres e ciclistas e à redução das mortes no trânsito.
O que foi analisado:
Âmbito federal
Código de Trânsito Brasileiro (1997)
Política Nacional de Mobilidade Urbana (2012)
Resoluções Contran
Âmbito municipal
Plano Diretor Estratégico (2014)
Lei de Uso e Ocupação do Solo (2016)
Lei das Calçadas (2011)
Plano Emergencial de Calçadas (2008)
Plano Municipal de Mobilidade Urbana (2015)
Manuais Técnicos da Secretaria Municipal de Infraestrutura urbana e Obras (SIURB)
Manuais Técnicos Companhia Engenharia de Tráfego (CET)
De forma geral, as diversas cartas regulatórias apresentam consenso com relação às suas diretrizes. Pedestres e ciclistas (modos ativos ou, como consta nas leis, modos “não motorizados”) têm prioridade de circulação sobre os demais, assim como o transporte público coletivo possui prioridade sobre o transporte individual motorizado. Tal priorização se dá ora de forma explícita, como na Política Nacional de Mobilidade Urbana (2012), ora de forma implícita, como na forma usada pelo Código de Trânsito Brasileiro (1997) ao delegar as responsabilidades.
Há uma tendência, pelo menos retórica: modos ativos e coletivos devem ser resguardados e priorizados em políticas públicas. No entanto, o conjunto da regulação não articula uma agenda em torno do tema da segurança viária, fazendo com que, na prática, haja entraves para que as intenções sejam transformadas em ações reais.
As razões para isso podem ser resumidas ou agrupadas em três eixos principais:
- Incipiência: quando a regulação está “incompleta”;
- Ambivalência: quando a regulação contrapõe a si mesma;
- Accountability frágil: quando a regulação é boa, mas implementá-la depende do Executivo, sem que haja meios de cobrá-lo por isso.
Incipiência
A regulação está “incompleta”, pois não traz instrumentos ou metas que acompanhem as diretrizes. Às vezes, o texto adia a própria regulamentação, que nem sempre se realiza.
Em São Paulo, um exemplo disso pode ser observado na adoção de dispositivos de acalmamento viário pelo Plano Diretor Estratégico (2014). Até hoje, tais dispositivos não existem nos manuais técnicos municipais relacionados a projetos viários. Pior: mesmo sendo as únicas ferramentas concretas sobre segurança viária previstas em toda a lei, ficam impedidas de serem implantadas no viário principal, onde estão concentradas as ocorrências de trânsito com vítimas.
Se existe um consenso sobre de quem é a prioridade na circulação (pedestres, ciclistas, transporte público), não existe uma convergência na regulação sobre instrumentos capazes de dar suporte a essa prioridade.
Exemplo
- O Plano Diretor estabelece diretrizes para acalmamento viário, mas não é autoaplicável e...
- A Lei de Zoneamento não regulamentou
- Os Manuais da SIURB não incluíram
- Os Manuais da CET não padronizaram
- O Plano Municipal de Mobilidade Urbana de São Paulo traz metas mas não apresenta fontes para obtenção de recursos e para a gestão da implementação
- As resoluções do Contran são focadas no tráfego veicular
- Inclusão de dispositivos de acalmamento de tráfego não foi realizada pela Lei de Zoneamento, conforme previa Plano Diretor
O que diz a lei
Plano Diretor Estratégico de 2014
Art. 27 - De acordo com os objetivos e diretrizes expressos neste PDE para macrozonas, macroáreas e rede de estruturação da transformação urbana, a legislação de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo - LPUOS deve ser revista, simplificada e consolidada segundo as seguintes diretrizes:
(...)
XXIX - adotar medidas para redução de velocidade dos veículos automotores, visando garantir a segurança de pedestres e ciclistas, tais como “traffic calming”
Ambivalência
A regulação entra em contradição consigo mesma, estabelecendo regras diferentes a partir das mesmas diretrizes, o que abre brechas para inverter a lógica: priorizar o automóvel sobre os outros modos de transporte e criar risco físico e jurídico a pedestres.
As contradições, algumas vezes, aparecem na maneira de associar as diretrizes normativas a mecanismos de controle social. O Código de Trânsito Brasileiro (1997), por exemplo, delega a condutores de veículos motorizados a responsabilidade pela segurança de quem faz uso dos modos ativos de transporte (não motorizados) e a ambos a responsabilidade pela segurança de pedestres. O mesmo texto, no entanto, estabelece regras que responsabilizam pedestres e ciclistas por sua própria segurança.
O caso mais emblemático está no Artigo 69, que obriga pedestres a se certificarem de que não obstruirão o tráfego de veículos ao atravessarem as ruas em esquinas. Além de correr risco de atropelamento, tal pedestre corre ainda o risco de ser responsabilizado pelos danos causados em um eventual incidente. O mesmo artigo garante o direito de atravessar a via em qualquer ponto, na inexistência de sinalização de travessia a menos de 50m. O direito de cruzar a via entra em conflito com a garantia de segurança.
Outra contradição do Código é estabelecer uma padronização para as (altas) velocidades máximas permitidas nas vias urbanas e, ao mesmo tempo, autorizar que os municípios regulamentem por parâmetros próprios tais velocidades, fixando-as tanto abaixo quanto acima de tais padrões. Tal ambivalência permite ações como o aumento das velocidades máximas nas marginais Pinheiros e Tietê.
O que diz a lei
Código de Trânsito Brasileiro
Artigo 29
O trânsito de veículos nas vias terrestres abertas à circulação obedecerá às seguintes normas:
(...)
XIII - § 2º Respeitadas as normas de circulação e conduta estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres.
Artigo 69
Para cruzar a pista de rolamento o pedestre tomará precauções de segurança, levando em conta, principalmente, a visibilidade, a distância e a velocidade dos veículos, utilizando sempre as faixas ou passagens a ele destinadas sempre que estas existirem numa distância de até cinqüenta metros dele, observadas as seguintes disposições:
I - onde não houver faixa ou passagem, o cruzamento da via deverá ser feito em sentido perpendicular ao de seu eixo;
(...)
II - para atravessar uma passagem sinalizada para pedestres ou delimitada por marcas sobre a pista:
a) onde houver foco de pedestres, obedecer às indicações das luzes;
b) onde não houver foco de pedestres, aguardar que o semáforo ou o agente de trânsito interrompa o fluxo de veículos;
III - nas interseções e em suas proximidades, onde não existam faixas de travessia, os pedestres devem atravessar a via na continuação da calçada, observadas as seguintes normas:
a) não deverão adentrar na pista sem antes se certificar de que podem fazê-lo sem obstruir o trânsito de veículos;
b) uma vez iniciada a travessia de uma pista, os pedestres não deverão aumentar o seu percurso, demorar-se ou parar sobre ela sem necessidade.
Código de Trânsito Brasileiro
Artigo 61
A velocidade máxima permitida para a via será indicada por meio de sinalização, obedecidas suas características técnicas e as condições de trânsito.
§ 1º Onde não existir sinalização regulamentadora, a velocidade máxima será de:
I - nas vias urbanas:
a) oitenta quilômetros por hora, nas vias de trânsito rápido:
b) sessenta quilômetros por hora, nas vias arteriais;
c) quarenta quilômetros por hora, nas vias coletoras;
d) trinta quilômetros por hora, nas vias locais;
(...)
§ 2º O órgão ou entidade de trânsito ou rodoviário com circunscrição sobre a via poderá regulamentar, por meio de sinalização, velocidades superiores ou inferiores àquelas estabelecidas no parágrafo anterior.
Accountability frágil
Accountability é um termo normalmente relacionado à prestação de contas sobre um determinado assunto, de forma que as pessoas à frente daquele processo tenham de responder sobre o que foi ou não executado, justificando os porquês de suas decisões.
A inexistência de metas, prazos ou dispositivos de sanção para cumprimento do que está previsto no marco regulatório ou de dispositivos para responsabilizar os tomadores de decisão no campo do sistema de circulação leva a este terceiro problema. Sem ser balizado por metas claras, prazos e mecanismos de sanção, o Executivo desfruta de certa liberdade, ficando livre de cobranças mais efetivas - por exemplo, por conselhos gestores ou outras instâncias. A implementação acaba ficando à mercê dos interesses políticos em jogo.
De um modo geral, o instrumento com accountability mais frágil dentre todos os de regulação são os planos de mobilidade. O Plano Municipal de Mobilidade Urbana de São Paulo (2015) traz propostas bastantes consistentes e métricas claras, mas não as vincula a financiamento (uma característica de incipiência) ou determina sanções aplicáveis ao Executivo por não executá-las, o que o torna fácil para o poder público não implementá-lo.
Por fim, também existe um problema de representação temática dentro dos órgãos. No caso das Câmaras Técnicas da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), por exemplo, não existe qualquer órgão ou profissional com experiência em modos ativos. Isso não é um problema regulatório, mas discricionário: na implementação das normas e estruturação do Estado, o espaço para o tema da segurança viária é relegado.
Exemplos
- A Lei de Calçadas depende de fiscalização ativa, mas não define quem responde por ela, ou seja, não há um ator a ser responsabilizado
- O Plano Emergencial de Calçadas exige estrutura de acompanhamento territorializado não implementada, inviabilizando a continuidade de sua implementação
- O Plano de Mobilidade de São Paulo não apresenta dispositivos de sanção para o caso de não cumprimento das metas estabelecidas
- As câmaras técnicas da ANTT não possuem técnicos com experiência em mobilidade ativa e/ou as questões trazidas para dentro dela não são orientadas aos modos ativos
Apenas 5 das 725 resoluções do Contran - Conselho Nacional de Trânsito tratam de questões sobre "pedestre", "bicicleta" ou "ciclista". Apenas 2 tratam diretamente de ações voltadas à segurança dos modos ativos.
Verbetes
Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) - Sancionada em 03 de janeiro de 2012, a Lei 12.587 orienta os municípios a elaborar seus próprios planos e a integrar o planejamento de transportes com o planejamento urbano, priorizando pedestres, ciclistas e quem faz uso do transporte público sobre o individual e motorizado. Não fazer um plano municipal de mobilidade implicaria ao município não poder acessar recursos federais, mas o prazo para que as cidades façam esses planos tem sido repetidamente prorrogado.
Plano Municipal de Mobilidade Urbana de São Paulo (PlanMob) - Dentre as diretrizes do Decreto 56.834, de 24 de fevereiro de 2016, está a prioridade a pedestres e aos modos ativos (não motorizados) de transporte, bem como ao transporte coletivo. O PlanMob também estabelece como objetivos principais a redução de emissões atmosféricas produzidas pelos sistema de mobilidade urbana e a redução do número de acidentes e mortes no trânsito.
Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (PDE) - A Lei 16.050, de 31 de julho de 2014, orienta o desenvolvimento e o crescimento da cidade até 2030. O plano também trata da otimização dos investimentos públicos, da distribuição das oportunidades, associando a oferta de emprego e moradia e da estruturação do desenvolvimento a partir da expansão da rede de transporte.
Código de Trânsito Brasileiro (CTB) - Sancionado em 1997 e atualmente em revisão, reúne e define as atribuições das diversas autoridades e órgãos ligados ao trânsito do Brasil, fornece diretrizes para a engenharia de tráfego e também estabelece normas de conduta, infrações e penalidades para os diversos usuários desse sistema.
Accountability - é um conceito que trata da obrigação de indivíduos ou organizações para "prestar contas" sobre as atividades conduzidas, se responsabilizar sobre elas e apresentar resultados de forma transparente. Na análise conduzida neste trabalho, o conceito é usado para a esfera pública da política, tratando das atividades exercidas por servidores públicos, eleitos ou de carreira, e sua obrigação de prestar contas para seus representados. Podemos elencar cinco elementos como necessários para ter accountability: obrigatoriedade de fornecer informação (sobre a questão), obrigatoriedade de oferecer justificação (sobre uma determinada ação), dispositivos/mecanismos de sanção (caso aquilo que foi prometido não tenha sido cumprido ou tenha sido realizado de forma diferente do combinado), um agente do controle (um sujeito passível de ser responsabilizado), e um domínio (só pode fazer isso em uma determinada área).