A relação da imprensa com o tema mudou bastante nos últimos anos. Apesar de vários pontos positivos a serem destacados, como o acompanhamento por parte dos jornalistas de relatórios oficiais de mortes no trânsito e a velocidade ser vista como um fator que aumenta a gravidade das ocorrências com vítimas, ainda há muitos espaços para melhorar a narrativa.
Como falou a imprensa
Análise feita no primeiro semestre de 2018 mostra que a cobertura feita pela mídia baseou-se principalmente nos seguintes temas:
Relatos de acidentes
Apesar de a cobertura sobre ocorrências de trânsito ainda estar muito centrada nos impactos nos congestionamentos, muitas reportagens humanizam os casos, discutem os impactos, além de destacar a imprudência de todos os atores.
Problemas com a sinalização
Destaque aos problemas de sinalização dando a ideia de que isso confunde os motoristas
Balanço de mortes no trânsito
Acompanhamento mais constante dos balanços relacionados a vítimas fatais do trânsito, como o Infosiga (mensal) e o relatório anual da CET.
Retirada de ciclovia
Em vez de questionar se devem ou não ser implantadas, houve menções às condições das ciclovias e calçadas.
Ainda não está bom
Há avanços na narrativa, mas há ainda há pontos cruciais a serem melhorados
Modos ativos e coletivos continuam com a imagem de "alternativos"
O incentivo a tais modos de locomoção sequer é citado como política de redução de congestionamentos. A cobertura da greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, pode ser um bom exemplo: alguns dias após o caos ter se instalado nas cidades, as bicicletas entraram na pauta sendo propagadas como a grande alternativa ao transporte motorizado para aqueles dias. Mesmo com a pesquisa de qualidade do ar feita pela Fapesp atestando a brusca redução da poluição, os modos ativos não foram conectados em reportagens como uma política de redução de velocidades ou melhora de qualidade do ar.
O que fazer:
Sugerir pautas para a grande imprensa que conectem esses temas, pensando sempre em ganchos como o mês da mobilidade ou lançamentos de balanços de mortes no trânsito.
"Rejeição da população"
Mesmo com a narrativa que começa vez por outra ficar positiva sobre ciclovias, parte significativa dos porta-vozes escolhidos para as entrevistas nas reportagens dão a impressão de que a população ainda não as aprova.
O que fazer:
Pautar a imprensa com números que mostrem que a implantação de infraestrutura cicloviária tem mais ganhos do que perdas, como por exemplo, quanto a implantação de uma ciclofaixa trouxe de redução de vítimas no trânsito naquele local (para todo mundo, não apenas ciclistas). Além disso, pesquisa da Rede Nossa São Paulo publicada em 2018 mostra que 78% dos paulistanos são a favor da construção e ampliação da malha cicloviária.
Pedestres e ciclistas continuam sendo culpabilizados
Muitas vezes, em vez de serem tratados como usuários mais vulneráveis das vias, conforme categoriza a literatura internacional, o elo mais fraco é retratado como "imprudente" e culpabilizado. Isso se dá ora pela equipe de imprensa (repórter ou âncora do jornal), ora por porta vozes selecionados nas entrevistas (às vezes, oficiais da própria Prefeitura!).
O que fazer:
Ajudar o jornalista perceber a conceituação dos chamados "sistemas seguros", que são a base do movimento Visão Zero, de redução de mortes no trânsito: “Não se trata apenas do porquê uma ocorrência de trânsito aconteceu, mas porque as vítimas ficaram tão gravemente feridas, como o impacto da batida poderia ter sido reduzido. Em um sistema seguro, uma ocorrência grave não é culpa de uma pessoa, mas uma falha do sistema. Não se trata de culpar motoristas pela devastação em uma batida, mas se perguntar poderia ter sido feito diferente de forma a reduzir tais danos. Quais componentes poderíamos melhorar para tornar o sistema mais perdoável para que os erros não custem a vida. É ser reativo, mas agir proativamente e perguntar como podemos reduzir riscos.” (The Difference Between Life and Death – a 20 minute film)
Imagem ruim
Muita gente ainda acha que alertar para o risco das velocidades altas é como “sensacionalismo”, ou uma demanda de um grupo que “não quer que a cidade ande" e está em “guerra contra os carros”.
O que fazer:
Usar cada vez mais números comparativos, para provar que não se trata de sensacionalismo. A redução de velocidades (assim como a construção de ciclovias) é recomendada pela Organização Mundial de Saúde como forma eficaz de reduzir a gravidade das ocorrências de trânsito com vítimas.
Palavras-chave que devem ser evitadas
Algumas expressões, palavras ou ideias em uma reportagem podem gerar efeito negativo ou a compreensão equivocada da situação. Por isso, vale a pena evitar:
Acidentes
A palavra "acidente" remete a algo inevitável, um imprevisto, e seu uso é questionado internacionalmente quando se trata de ocorrências de trânsito com vítimas. Uma vez que há dados históricos sobre os principais fatores de risco, quais são as vias mais perigosas (e porquê são perigosas) e quais medidas de prevenção mais eficientes poderiam ser adotadas, uma ocorrência de trânsito com vítima raramente pode ser enquadrada como inesperada. Ao contrário, muitas vezes a palavra correta é negligência. Na hora de escrever sobre ocorrências de trânsito, use termos que efetivamente descrevam a situação, tais como atropelamento, invasão de calçada, colisão, capotamento etc.
O "carro" fez o quê mesmo?
Não é o veículo que perde o controle, acelera ou atropela: é quem o conduz. Ao relatar uma ocorrência de trânsito, troque palavra "carro" ou mesmo a marca do veículo pela palavra "motorista". Humanizar os atores aumenta a empatia do leitor e o entendimento dos fatos, além de contribuir para a compreensão de que ocorrências de trânsito não acontecem devido a uma rebelião das máquinas, mas porque há diversas pessoas envolvidas: sejam elas as vítimas, os condutores ou mesmo (lembre-se sempre) os planejadores e mantenedores das vias.
Cobertura fatalista
Vale a pena evitar expressões e construções que questionem quem é a vítima ou reforcem o conceito de "disputa por espaço". Isso transmite a ideia equivocada de que compartilhar o espaço das ruas não é possível - portanto, a rua não seria local para bicicletas ou mesmo pedestres. As ruas são para as pessoas, estejam elas dentro de um veículo, sobre ele ou se deslocando a pé.